Eu te desejo uma vida suportável.


foto leticia andrade - centro de ribeirão preto


À minha irmã, no dia da passagem de seus anos e às dores físicas no meu punho dessa merda de vida contemporânea.


Quando já vi era tarde demais. Essa rotina sempre tirava ela do seu controle habitual, que se regrava todo dia. Mas se treinou sozinha a mastigar e encher a pança quando dava, a fumar seu cigarro quando o filho não estava perto, pra não dar explicações e curtir sozinha sua condição medíocre. Arrumava as tranqueiras e pegava o ônibus das 5. Ela caminhava com dificuldade até seu ponto, que era na joão bonifácio com são sebastião, e ali restava o dia inteiro sentada e impassível, não precisava de fazer muito. Os DVDs se mostravam sozinhos e parava quem queria, não incomodava ninguém e ninguém dali perto, comerciantes da esquina ou clientes apressados sabiam seu nome. 

Naquele momento, eu queria cuidá-la com o carinho de quem cuida da própria mãe, levá-la pela mão, e pagar um café com churro de doce de leite para ela, mas me sentia uma covarde, estrangeira e intrometida, por saber que não sou nada e não mudarei nada na vida dela. Sabia desde sempre que ninguém muda a vida de ninguém, apesar de não me acostumar com isso ainda, me restei a continuar nesse passo parco da minha caminhada inútil de encontrar o meu extraordinário de cada dia.

Só às 2 da tarde, abria sua marmita, naquela histeria coletiva natalina, e mordiaeengolia aquele arrozcomfeijãoeliguiça unguentado pelo mormaço da sua bolsa. Não deixava de olhar os homens turrões que ali passavam, pois tinha resquícios de desejo embaixo dela, que nunca sarariam. Se via ainda como uma grande lata de vergonha pela própria gordurasaturada do ócio que os anos lhe legou por sua inevitável contravontade.

Eu sei que as 6 da tarde vai chegar, sempre diz a ela mesma, pensando na novelaconsolo das 9 da noite. Mas as horas emplastadas custavam a passar, os suores, a gastritecal do seu estômago, a falta do filho durante o dia, dilatavam sua espera. Mas ela era grossaetesa da sua própria humanidade e não via nada além daquela esquina. Os dias não eram escorridos, mas injetados da grande diferença que ela fazia na minha vida, ela sempre teria que estar lá, pois em nenhum outro lugar, eu poderia trombar com tudo aquilo que fugimos: o deslocamento do pavor de nos tornarmos descartáveis.


Mas hoje, choveu, choveu melado, antes das 6 da tarde e os DVDs foram ensopados todos, em segundos e teve ali o seu prejuízo. Pegou o ônibus mais lotado do ano, e no trajeto, pensava que quando chegasse em casa, o filho ia criticá-la pela moleza e falta iniciativa, por aquela sacola do paraguai que virou uma vitamina de plásticos, papéis de qualidade duvidosa e CDs carcomidos. Ela não jantaria e se restaria apenas na frente da telinha chiada, e se entregaria às baixarias sedutoras da mulher rica da novela. A única coisa que queria poder dizer era: "Você me paga, você não sabe com quem está falando"..., daria um sorriso internoerouco e dormiria feliz, com a sensação de uma vida plena e realizada e foi  assim que deu o sinal no ônibus para descer. 


foto leticia andrade - centro de ribeirão preto


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