Um olhar artesalmente contemporâneo no espetáculo O senhor e o servo, da Cia Cornucópia
[Crítica]
Trecho extraído do capítulo: "Nacional por subtração", Que horas são?, p.35 e p.48.
Eu me pergunto o que é contemporâneo no teatro hoje? Elementos datadamente atualizados, como um efeito de luz high-tech ou a utilização de uma sonoplastia descontruidamente "moderninha", significa que um espetáculo é contemporâneo? Ou ainda remontar inumeras vezes Hamlet, vestido de motoqueiro, ao som de Bjork pode ser parâmetro para que eu diga que este espetáculo é contemporâneo? As coisas podem se embaralhar muito quando se usa os discursos sem conhecimento sobre a origem das palavras que ousamos usar sem nem saber para que usamos...
Entendemos essa palavra absurdamente inesgotável de sentidos, "contemporâneo", como uma tentativa desoladora de se tentar um novo extremamente impossível de vislumbre hoje. Somos contemporâneos pois estamos aqui, mas falo de uma instância estética e ética da contemporaneidade e especificamente o contemporâneo na arte teatral. Teatro contemporâneo não é só esteticamente descolado, mas carrega uma atitude autoral e consciente de seus fazedores, ou seja, um olhar de maturidade sobre a própria obra. Esquecemos, que a linguagem teatral, de tempos em tempos, voltou-se para o que é mais simples, e não menos difícel de se alcançar: o jogo equilibrado dos signos da cena, tais como luz, cenografia, sonoplastia, com as instâncias da dramaturgia e o jogo consciente e entregue de atuação que se desafia e que se mostra presente frente ao espectador. Esta é a contemporaneidade teatral de "O senhor e o servo", da Cia Cornucópia, com a direção firme e madura de Dino Benardi. A adaptação da narrativa de Tolstói não se mostra cristalizada nem cheira a museu, é deglutida pelo olhar autoral de seus criadores e não cai em tentações moderninhas que sufocam as grandes obras e mostra a beleza duramente cruel de uma história universalmente conhecida, no qual um servo e o senhor estão imersos em um travessia aparentemente banal no gelo, que se abre como um lugar do embate humano entre a necessidade, a selvageria e a humanidade de ambos os personagens. Ainda falando sobre a encenação, inusitado notar o jogo entre as instâncias, épicas, dramáticas, cômicas e trágicas da atuação e da direção, as várias maneiras de se contar a mesma história novamente fazem com que o espetáculo volte a se aproximar do que considera-se contemporâneo no teatro, o espectador se pega rindo da zombaria dos atores com narizes negros e ora se compadecendo com o discurso trágico narrado por uma narradora inominável que atravessa a cena, dando pontos de vistas sobre a trama. A utilização de cadeiras transformadas em cavalos, manipuladas pelos atores, é outro ponto contemporaneamente reconhecido no espetáculo, novamente é pela ação consciente do ator que a ficção se torna possível, e isto somente o teatro é capaz de fazer. Deixo aqui minhas considerações como uma forma de se repensar uma ideia localizada do teatro, no qual o teatro ribeirãopretano já há muito está em conexão direta com as linguagens teatrais pequisadas no país e fora dele, e ainda mais, temos que parar com essa história de hierarquias estéticas, de pararmos de nos sentir sempre em débito com o centro das referências artísticas, como se um fosse melhor e o outro pior. Evocando o brilhante sociológo e crítico Roberto Schawrz: "Por que dizer que o anterior supera o posterior? O central pelo periférico? Seria mais exato e neutro imaginar uma sequência infinita de transformações, sem começo nem fim, sem primeiro ou segundo, sem melhor ou pior. (...) A vida cultural tem dinamismos próprios, de que a eventual originalidade, bem como a falta dela, são elementos entre outros e deve ser liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada".
Trecho extraído do capítulo: "Nacional por subtração", Que horas são?, p.35 e p.48.
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