teatro, minha paixão, meu ódio e minha morte



[pensamento, depoimento, quase confissão]

ontem esse teatro, que tanto me ocupo, mente, corpo e futuro, pois pesquisa envolve a esperança na continuidade da arte, me matou. não sei explicar ou melhor tenho medo de confessar que estou exausta de tentar salvar o teatro que se deseja morto, não sei se você me entende, nem sei se quero me fazer entender tão objetivamente, mas dou alguns fatos para me tentar ser entendida um mínimo, pelo menos: desseseis anos na labuta, três grupos de teatro, e meu sangue já foi jorrado algumas vezes mas minhas mãos de nhanha, no frio de ouro preto, na loucura de grupos jovens, que se disputavam sem porquê e hoje bebem uma cerveja juntos, uma perna quebrada num trabalho de rua, por tirania do meu chefe, que Deus o tenha, mas me massacrava por ser mulher e o pior por fazer um trabalho justo. 


outra mão quebrada num salto do andaime maldito, literalmente, onde descobri o tempo certo de minha fiel secretaria trabalhadora, de meu parceiro de cena guerreiro oxossi - única lembrança boa de um teatro vivo -, mas que foi literalmente o buraco de minha atuação mais dedicada, isso ninguém viu pois isso nunca estreiou, a minha mãe de papel, que só ficou na lembrança de um caderno perdido nunca viu mais seu leite de suor e canto inebriante. 


tentei também subir na vida, com parceiras de trabalho únicas e fomos todas despedidas por falta de residência, fundos e tempo de trabalho, pois não tínhamos na carteira assinada a palavra: GRUPO. 

então escrevi e escrevi, e tive uma lesão na mão, para variar, via as cenas se desenrolarem a minha total revelia, sem ter o direito de compor e dar opinião juntamente com aqueles atores que mais admiro, pois sei extamente o que é estar exposto, ter medo, dores nas juntas, roxos no joelho e ainda ter que repetir o que nunca ficará suficiente. mudei de lado, ensinei, escrevi e dirigi, mesmo sabendo que o mundo não me via assim, e não era suficiente. 

evocava Artaud, narrava Brecht, mas só conseguia ver essa imagem tão irreversivelmente dura de Dürer, chamada Melancolia, que Benjamim, tão bem apontou como nossa modernidade pobre, carente e desencantada de nossa arte, mas tão bela e viva, ao mesmo tempo. levantei e dei a volta por cima, resolvi mergulhar em outros grupos, outros ares outro lugar, conhecer e não desistir de se abrir a novas artes e fiquei um pouco sã. mas vejo os outros e tenho muito ódio do que estão fazendo com o teatro, jogam água em nossas cabeças em trabalhos que deveriam pegar o público, como que guiasse uma criança ao atravessar uma grande avenida de poluição e ignorância, leio o jornal e não acho a seção da cultura, e quando acho, o dia do espetáculo já passou, ainda tenho que vender o almoço para comprar a janta e ainda sonho em condições de ver todos os teatros e ajudar numa ideia besta de ajudar os artistas. esses que deviam parar de colocar seus egos na frente de tudo e apenas fazer teatro, coisa simples, mas tão impossível hoje. 

quero amar o teatro da minha rua, da minha calçada, mas só caí no buraco das minorias que se deixam ser elitizadas por elas mesmas. vivo de teatro, mas quero assassiná-lo dentro de mim. esgotada, também me recordo de Maurice Blanchot, quando matou a literatura, é preciso acabar com algo para se renascer. 

não vou desistir, mas vou arquitetar um plano macabro, pego o teatro na minha esquina e quero satisfações, e que sejam bem convincentes, pois sou dura na queda, e não tenho mais medo nessa vida de cenas perdidas.

quebre a perna e engesse tudo, porque o show tem que continuar... 




Comentários

  1. Querida Letícia,
    parabéns pelo blog, vou "linká-lo" ao meu. Achei adorável o seu desabafo. Temos, todos nós profissionais do teatro, histórias parecidas. Desesperos, ruínas e uns poucos remansos de bons encontros artísticos.
    Ruínas e remansos são, ao final, essenciais.
    As opções de um profissional da cena são cruciais. É, ainda, durríssimo se tornar um profissional verdadeiramente. Poucos o conseguem. Pouquíssimos conseguem viver bem, criar bem a família, educar os filhos com o que lhe rende a profissão. Eu sou um desses sortudos. Mas tb comi o pão do diabo. Também passei pelo inferno dos grupos. Os grupos, para além do que podem representar como instância de criação foram, em sua gênese, e ainda hoje o são, alternativas de produção. É o que são na verdade. Se tivéssemos empresas produtoras que pudessem nos empregar como a saudosa empresa de Franco Zampari em São Paulo, seria uma maravilha. Mas não temos isso. Ela também faliu. Grupos que se consolidaram, na realidade não são mais grupos, mas empresas. Como o Galpão, o Corpo, a Cangaral, a cia. do Carlos Nunes, etc. O grupo mesmo, com seu idealismo, é instância de produção no limite do amadorismo. Não buscam arrecadação de bilheteria, mas apenas financiamento das leis de incentivo. São amadores. Dar o salto ao profissionalismo é o desafio. OPara cumprir este desafio, o grupo se transforma em empresa ou os artistas se tornam profissionais independentes, deixam os grupos e passam a ser contratados por eles. (Kalu Araújo, Eid Ribeiro, Pedro Paulo, Rômulo Duque, Wilson Oliveira, etc.).
    O grupo é um belo sonho.
    Mas a sua estrutura só pode ter sustentação se conseguir transformar-se em empresa e poucos o conseguem.
    Daí que vemos poucos artistas de teatro com mais de 40 anos. Em geral as pessoas desistem na casa do 30.
    Os que, ao chegarem aos 40, conseguem evidência e têm tino comercial montam suas empresas ou se tornam artistas profissionais independentes.
    Os que atingem os 40 e têm apenas talento, limitam-se a atuar umas poucas vezes por ano, em contratos de percentual de bilheteria ou pouco mais. Tiram seu sustento de outra atividade.
    Os demais deixam a profissão.
    Você está no caminho de se tornar uma profissional independente, professora, pesquisadora, dramaturga, diretora certamente.
    Já não pode mais viver de migalhas que um grupo proporciona.
    Penso que os caminhos de profissionalização devem ser mais debatidos.
    Talvez seja matéria para muitos posts no seu novo blog.
    Parabéns mais uma vez.
    Grande abraço.

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  2. acho que fomos pegas pela frase "subir na vida não é algo tão difícil assim"...
    bom te ler
    e que a morte acabe em festa
    um beijo.

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  3. estimado walmir,

    quero agradecê-lo por compartilhar sua sensibilidade artística e política, que tanto admiro, aqui, comigo, nossa profissão, assim como qualquer uma, não precisa mais de migalhas, precisa de realizações, as coisas se fazem com planejamento, com trocas, buscas incessantes, por isso não me acomodei mesmo, como admiro e falo com orgulho no coração que vim do teatro das minas e todos por aqui, têm um respeito muito grande de nosso talento e garra, mas concordo contigo e quando disse no texto que é necessário um movimento vertical é porque merecemos mais que talento, como vc aponta, mas também torna-se empresa, como vc tão bem fala, é matar a própria natureza do teatro... não apenas temos que nos fazer revindicados, mas assumir uma postura, um olhar diferente do "muito pouco" que se contenta, atuar poucas vezes por ano, que vc tão bem aponta, assumir que faço isso, sou isso e não nas horas vagas. obrigada mais uma vez, por compartilhar tamanha e talentosa experiência de vida e teatro que vc tem neste espaço de discussão, grande mestre, grande dramaturgo, grande diretor, estou empreendendo a cada dia, novas lutas, novos projetos para que o teatro se faça renascer, com toda potência que ele merece...

    joyce, hj sei e acredito que subir na vida é algo necessário a todos nós, e tivemos a coragem, nossa experiência foi difícil para todas nós, mas extraordinária, aprendemos e somos humanos mais abertos por não ter medo de tentar... beijo também e obrigada por me ler.

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