Dois contos pra mexer com os nervos porque meu negócio é com as palavras

Adoro esse texto escrevi ele em 2004, num momento de transições mas ele surge agora como um recordar é viver...


A chega


Chega uma hora que é preciso dizer algumas coisas sinceramente verdadeiras que ficam guardadas dentro da gente. É quando chega a hora da partida para algum lugar que você sempre teve medo de voltar, mas que, beirando uma perversão íntima, tem quase uma obrigação escusa de tomar tal atitude. É quando chega a hora de alguém que você já tocou várias vezes e insuflou sentimentos desconhecidos, ir embora de vez e para sempre. Porque tá passando da hora mesmo deste estranho ir embora ou porque você não pode mais ficar recebendo àquele hóspede inoportuno. Chega assim o momento que você deve decidir se dobra à direita ou à esquerda. Se gosta de homem ou de mulher. Se gosta dos dois, ou ainda não gosta de nenhum deles. Chega uma hora, amigo, que você deve decidir se gosta de vermelho ou de morango. Chega o momento na vida de um ser humano, que ainda não perdeu a capacidade de se emocionar com o sono de um bebê, que é preciso deixar de traçar objetivos para um futuro distante. Para àqueles que sempre os teve em seu trajeto, chegou a hora de perdê-los um pouco ou vez.



Por isso estamos aqui. Perdemos contudo nossas graças, próprias e alheias. Esquecemos o mais importante: Estamos integrados pela desgraça humana. E chegou nossa hora de dizer adeus e continuar seguindo em outra direção.
A questão portanto resume-se:
Quando chega este momento?
E quando muda tudo de vez, frente aos nossos olhos?   
Chega, assim amigo, a hora que nada dá certo
e nada começa e nada muda.
Você espera que algo aconteça, é óbvio que todos desejam que algo extraordinário em suas nossas vidas miseráveis.
Porém, você espera sem saber o que pode vir e acha isso a maior coisa da vida.
Ficar sem a noção para aonde ir. Esta é a sensação primeira.  
É por isso que estamos aqui. Já nascemos tortos, com narizes pintados e deformações múltiplas. A partir de agora, estamos preparados para qualquer espécie de tolice humana.

***

o segundo conto é uma homenagem a uma viagem em 2005? ou 2006? que fiz a Fortaleza e nunca mais esqueci.


De como moças voluptuosas desafiam o que deseja ser desfeito

Aquela era uma mesa de respeito. O grupo estava excitado, pois há pouco se conhecia, por isso o desejo da conversa era grande. Ruídos de bar. Tilintar de copos. Cadeiras de ferros arrastando no chão de cimento. As vozes roucas de tanto fumar e beber. 50 garrafas de vidro marrons em cima e embaixo das mesas. Vazias e cheias. Olhares transversais. A noite não tinha hora de ir embora.



Aquela noite, tinha tomado a decisão:



(essa coisa da afirmação deve ser um refrão. todos desejam marcar sua identidade nos lugares, mesmo que elas se apaguem num minuto posterior)



iria raptar o moço meio claro, com olhar malicioso e jeito de malandro “sou o gostoso da parada”. Todo cantador tem vocação para namorador.



Luana era morena e carnuda. Fazia jus à fama de arrebatadora da turma. Apesar das idéias de sentimento de inferioridade que estragam qualquer mulher que se preocupa com outra mulher, ela estava confiante de que nada poderia detê-la. Não pôde mesmo. Eu, narrador insistente, gostaria de captar o relance do seu olhar para descobrir seu mistério melancólico, sua tristeza sem porquê.



Ele, Miguel, fazia jus à fama de cafajeste. Era pai a pouco tempo e vivia com mulher. Isso ela não sabia, mas daqui a pouco vai saber.

Mas voltando ao palco da noite, Luana deslizava e reluzia faíscas. Saia branca, ombros bronzeados (os homens que teve, tinham um problema, quer dizer um desejo, por esta região corporal tão insignificante) e cachos. Os cachos castanhos com mechinhas alouradas de Luana eram a perdição de qualquer caboclo. Eles iriam fazer perder mais um. Não passaria de hoje.

Você sabia que Miguel é casado, e tem filho? Não, não sabia, Luana repetia cruelmente para si mesma. Agora o fato veio à tona e ficou sabendo. Isso a abalou. Sim. Mas toda a história, não, vamos à ela finalmente.         


Finalmente, tomaremos aquela cerveja que você me prometeu. Luana neste instante já tinha perdido a vergonha na cara. Ação esta que lhe encheu muito de orgulho, já que sempre fora recatada e deixava os moços tomarem a iniciativa primeiro. Naquela noite etílica, foi ela que chutou pro gol primeiro. Vamos ver se acerto, pensou.

Miguel a olhava muito, sorria maliciosamente. Tirou as chinelas de couro e encostou seus pés nos pés já desnudos de Luana, embaixo da mesa. Ele perguntava para ela o que fazia, sua cidade, seu trabalho, sua arte e sua vontade de viver. Mas Nando, do outro lado de Luana, também a dissecava com os olhos e ganhava pontos com a donzela brazeira pelo discurso bem argumentado e pelas gentilezas fúteis de se encher o copo quando ele começava a esvaziar. Isso ela gostava. Sempre gostou.

Neste ponto da história, Miguel juntou-se a outros amigos, deixando desolada a morena lasciva. Ela nunca era solitária, no entanto. O papo com Nando subiu e se aproximou o suficiente para os joelhos destes dois personagens se tocarem. O calor vinha por todos os lados.

A noite, porém insaciável, prenunciava à garota que aquela era uma pausa necessária ao jogo da sedução.        

        Olhares longínquos, transversais. Quinze minutos se passaram, acho eu. Retorno à cadeira que estava vazia. Eis o convite. Vamos dar um rolê no quarteirão? O movimento de cabeça de Luana confirmou. É um absurdo, é a sua irmã, dizia uma amiga pro irmão da existente esposa. O moço fingia não entender a pergunta. Seria um código de fidelidade masculina? Realmente era uma petulância. Mas quem não sonha com um tipo de petulância dessas na vida, pergunto eu, narrador sem escrúpulos?

        Ponto clímax da história, Luana balançava levemente a saia de algodão cru, um pouco se oferecendo, um pouco se escondendo. Olhava através dos ombros para o moço com trejeitos de pescador, sua barba rala, seu cabelo revolto, seu olhar esguio. Miguel tinha instintos fortes, agarrava a menina pela cintura, mergulhava em seus cachos e não deixava que seu corpo se afastasse. Debaixo de uma árvore, na escuridão de um bairro deserto de uma madrugada nascente. É somente hoje, amanhã tudo se acabará, dizia a morena. E ele ousava compreendê-la, domá-la por mais tempo possível. Luana sempre teve ímpetos incontroláveis de liberdade, só vivia de momentos. Sabia que nada era para sempre e que os amores não duram mais que uma semana. O mundo havia ficado muito descartável, pensava ela.

Miguel sussurrava silenciosamente picardias em sua orelha, que a excitavam. Ela dizia verdades que o desafiava. Descomprometidamente, suas peles se tocavam, agressivos e pulsantes. Dois iguais na fúria das mãos e das bocas. Dois vagabundos que se encontraram por acaso. Encontro forte, disse ele uma vez depois.

        Foram vinte e dois minutos de ausência dos dois naquela mesa de bar. Animada. Curiosa. Cheia de inveja. Neste instante, todos já estavam bêbados para distinguir as imagens derradeiras da noite. A mesa de respeito agora se desfazia e o dono do bar já de mau humor mandava seus clientes barulhentos embora. A conversa ia morrendo, rumores sobre a fugida de Miguel e Luana ainda corriam na mesa. Está na hora de embora, disse ela.

        Não sei mais de fatos depois dessa fala da garota, que domou o cantador cafajeste. Ou que ele teria domado? Não sei muito bem quem foi o caçador ou a captura. Não me importa. Os desejos consumados são lances no escuro. Depois de acesos, apagam-se rapidamente. Isso porque nenhuma luz brilha da mesma forma. Lembro-me da ressaca. Do café ralo do hotel. Das fofocas no outro dia e a marca nos ombros de Luana, sentada no avião de óculos escuros, em silêncio durante toda a viagem de retorno para casa.         

***

E é isso ai, deixa eu pensar um pouco...









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