Trajetória na dramaturgia

Sou atriz, dramaturga e professora. Me formei no TU em 1999 e este ano faço dez anos que trabalho com o teatro. Fiz letras e no ano de 2002 comecei meu mestrado em literatura, na área de semiótica, pesquisando os contos mínimos de Fernando Bonassi e a relação desses com a cena contemporânea. Foi quando iniciei minha trajetória dramatúrgica, em novembro de 2002. A partir de um convite do ator e diretor Julio Maciel do Grupo Galpão adaptei em duas semanas o romance Barão nas árvores, de Italo Calvino para um projeto que ele estava tentando realizar. Infelizmente, o espetáculo não vingou por dificuldades de produção. Mas esta adaptação foi um primeiro exercício de lidar com o texto narrativo e a instância da cena, que é um dos principais processos que persigo. E neste exercício aprendi duramente a navalhar atrevidamente uma obra prima. Talvez este seja o ato mais cruel e difícil dos adaptadores ou dramaturgistas atualmente. Você deve partir do pressuposto que uma obra de arte, por mais incrível e única que ela possa ser, deve ser encarada como um ponto de partida de criação para outra obra. Isto não significa que não há critério de adaptação: no processo, junto com diretor, atores, cenógrafo e iluminador e etc, você deve eleger critérios comuns, e principalmente no se diz respeito sobre qual leitura, ou seja, o imprescindível “o quê” que o grupo quer dar àquela obra. Meu objetivo com o Barão foi transpor para o plano da rubrica e, principalmente, do diálogo toda narrativa do Calvino, que apresenta Cosme um herói utópico e radical, que decide, na adolescência, levar ao limite sua decisão de viver sobre as árvores. Havia a necessidade, mesmo que de modo sugestivo, de preservar o universo mágico de Calvino, por mais difícil que fosse colocar no palco as árvores de Cosme.


Pouco tempo depois em Fevereiro de 2003, o Julio me chamou para, em dois meses, finalizar todo o texto do espetáculo, que intitulamos, Bendita, a voz entre as mulheres, que foi realizado pelo Grupo do Beco, da Barragem Santa Lúcia de Belo Horizonte. Este trabalho me despertou para a de criação independente de uma obra já existente. Havia algumas histórias recolhidas pelos atores sobre a vida de algumas moradoras e um roteiro básico. Tive porém que desenvolver todos os diálogos e a arquitetura final do roteiro. O espetáculo tinha um tema simples, pois contava a trajetória de uma mulher negra que sonhava em cantar nas rádios mas que o marido não permitia. A simplicidade e a linearidade do conflito me ensinou a escrever diretamente para a cena sem tantos artifícios e exageros. Para tanto e devido a linguagem popularesca influenciada pelo Júlio, optei pelo gênero do melodrama, pois ao mesmo tempo que preservava o enredo romântico havia um jogo explícito das passagens cômicas e do distanciamento das cenas realistas, através das canções da rádio.

Em seguida, durante todo o ano de 2003, trabalhei no Oficinão, junto com a Isabel Jimezes, na adaptação e criação do espetáculo A vida é sonho, com a direção de Júlo Maciel, novamente. Era necessário transformá-lo, atualizá-lo, conservá-lo, recriá-lo. Por isso, tínhamos uma dupla jornada: adaptar as várias versões e criar cenas que se integrariam no corpo da peça. Mais uma vez também tive a árdua tarefa de navalhar um clássico, só que desta vez éramos quatro assassinos de texto: Eu, Bel, Júlio e Lydia, que trabalhávamos juntos na adaptação. Neste sentido, recorremos à duas traduções em português, além da original em espanhol (Bel é professora de espanhol e ficou encarregada desta função). À mim, coube a tarefa de criar duas cenas originais (que é o que mais gosto) para as atrizes que não tinham uma inserção no espetáculo. Esta foi a tarefa gratificante, pois além de compor coletivamente com as atrizes, tinha que relacionar tais cenas, de modo verossímil e com diálogos semelhantes, na arquitetura global do espetáculo, sem que houvesse um estranhamento do público. Para completar, tais cenas seriam cômicas, o que faria uma contraposição com a linguagem original do texto, que é uma tragédia do século XVIII.

Depois disso, meu quarto projeto foi o espetáculo Lírios, em que novamente trabalhei com a adaptação, só que agora do conto para a cena. Baseado em contos mínimos de Fernando Bonassi, o espetáculo tinha a direção Fernando Mencareli, e contava com os formandos de Artes Cênicas da UFMG, do 2o semestre de 2003. Desta vez, pude ter a experiência de trabalhar com a escritora e dramaturga Guiomar de Grammont. O processo durou aproximadamente quatro meses e tivemos a sorte de ter “atores dramaturgos” que se apropriaram antropofagicamente dos contos. O Bonassi já disse que nos seus contos “há uma concentração e que os contos são facilmente adaptados para o teatro porque podem ser lidos como “pílulas”. Quando eles vão para a cena é como “se adicionasse água para eles crescerem, pois o conto é um instante muito curto. Os contos têm sido ampliados não no sentido de diálogos, mas do ponto de vista da ação”. Neste processo, a Guiomar trabalhou na instância do texto, na escrita propriamente dita e eu na organização do roteiro. Me instigava mais os jogos de idas e vindas nas histórias, do que os diálogos em si. Aqui descobri a potência da narrativa da cena, em que as imagens encenadas contavam mais histórias do que as palavras ditas pelos personagens. Para mim, a ação dos contos eram arrebatadoras e deviam ser apenas contempladas no silêncio.

Em 2004, o projeto Cena 3X4 me convidou para realizar a dramaturgia do grupo Reviu a volta e a direção de Marcelo Cordeiro. Novamente trabalhei com minha parceira Isabel Jimezes. O espetáculo A Votre Service foi um encontro oportuno neste sentido. Pudemos realizar um obra teatral composta através do ponto de vista colaborativo e a partir de vários pontos de partidas: textos, imagens, criação de personagens, entre outros. Tal dramaturgia pressupõe ainda a invenção de um método. Consiste em um amplo trabalho de improvisação, baseado em temas, roteiros ou indicações técnicas. Devo citar mais uma vez o Bonassi que dá um depoimento, em uma entrevista concedida para a minha dissertação, sobre o ponto de vista do dramaturgo, em que diz:

“O processo colaborativo dá muito trabalho, pois precisa de muito mais investimento das pessoas. Todo mundo tem idéia de que algo improvisado é algo impreciso. Ao contrário, a improvisação tem que ser muito precisa porque senão ela se torna dispersiva. Exemplo de dispersão é o teatro de happening nos anos sessenta, que se perdeu num “palavroreio” porque não tinha critério. Diante da improvisação, o ator não pode atuar sobre qualquer coisa. O ator deve conhecer profundamente o tema sobre o qual se vai improvisar. Se o seu personagem é um soldado, você deve saber várias coisas a respeito disso: a idéia da guerra, o sofrimento da morte, a perda do companheiro. O ator que improvisa inculto faz uma má improvisação. A improvisação não é boa por ser espontânea ou por ser uma novidade. As improvisações que viram cena, espetáculo, são improvisações muito retrabalhadas. Mesmo no Teatro da Vertigem, o que se improvisou e foi para cena foi trabalhado dois anos antes. O ator não improvisa algo isolado, mas improvisa em relação aos estímulos que recebe. O modelo de teatro que partiu do trabalho do Antônio Araújo é o de ter um dramaturgo em cena. O dramaturgo organiza a bagunça, não deixa o processo se degenerar. Quantos grupos se perderam? Pessoas tendem à desagregação. As pessoas não se juntam, elas se afastam. Para você manter as pessoas na mesma concepção, é preciso ter um diretor e um dramaturgo. Essas instâncias no processo colaborativo são aquelas que lembram a você o que deve fazer, os objetivos comuns. Não acredito em uma loucura anárquica, de uma improvisação sem sentido. Durante o processo, eu, como dramaturgo, devo tentar ordenar o caos. Num processo de improvisação, também vou improvisar uma ordem. Encontrar um lógica. O dramaturgo na instância do texto, o diretor na instância da cena. O espetáculo somente funciona quando todo mundo se sente parte dele. É um processo de autoria. O coletivo é a fusão de várias opiniões. Não se trata de encontrar uma posição única. Por isso, tais espetáculos serão menos organizados do ponto de vista narrativo sempre. Menos únicos e menos fechados.”

Esse foi processo vivenciado no Projeto 3x4, com o Reviu, Bel e Marcelo. Desejavámos falar sobre a perda da identidade, simbolizada inicialmente pela perda de um nariz. Conseguimos compor a idéia de quatro seres que procuram suas memórias, e, nesta trajetória, enfrentam a si mesmos e os outros. Neste conflito, deparam-se com o impasse de não conseguir sair do lugar. Buscamos também o desprezo, a humilhação, o cuspe na cara e a mediocridade humana. Outras imagens importantes eram: o pisão no pé e o medo que o artista tem do fracasso. A idéia dramatúrgica do espetáculo era romper constantemente com o enredo e investir no metateatro, buscando exacerbar as convenções teatrais. Para mim, pude romper com tudo que tinha aprendido até então e tentar ir além.

De tudo isto, aprendi três coisas: A primeira é que o texto, como dramaturgia do espetáculo, não se refere apenas à palavra verbalizada pelo ator, mas se constitui, acima desse lugar comum, como uma escrita cênica. “Dramaturgia” não é sinônimo de literatura dramática. Pertencem à literatura dramática todos os textos teatrais, encenados ou escritos, compostos a partir do diálogo dos personagens e indicações cênicas. A dramaturgia, por sua vez, distancia-se do significado restrito de ‘texto teatral impresso’ ou de ‘diálogo proferido pelo personagem em cena’. A dramaturgia se refere tanto à palavra verbalizada pelo ator, quanto à roteirização das ações da cena. O dramaturgo, além de escritor, é aquele que compõe a narrativa do espetáculo, seja ela verbal, visual ou sonora.

O segundo aprendizado refere-se à multiplicidade de atividades. Hoje convivemos num mesmo espaço de investigação dramatúrgica com diversas formas de escrita cênica: a velha dramaturgia de gabinete, em que o dramaturgo isoladamente compõe isoladamente o texto; o exercício de adaptação de obras teatrais e obras literárias, buscando transcriá-las; e, de maneira intensa e recorrente, os processos coletivos de criação que unem a capacidade inventiva do ator, diretor e dramaturgo.

A terceira e última questão é que, para mim, penso que a experiência de se escrever cenicamente deve suscitar um encontro e um incômodo: a linguagem teatral deve modificar radicalmente aqueles que a fazem e aqueles que a assistem. Para tanto, as palavras ‘investigar’ e ‘compor’ significam um enfrentamento coletivo e crítico. E para isto, sempre acreditei que, como dramaturga, após todas as experiências produtivas com grupos de realidades e identidades próprias (Bendita, A vida é sonho, Lírios, Votre Service e agora sendo Maldita), que a cena contemporânea não pode perder de vista os vários olhares que trabalham na sala de ensaio. Funções estas que caminham juntas. E é por esse desejo de mudança, de construir e reconstruir, que acredito estar hoje aqui presente.

Maio de 2005.

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