Um Homem de bem (narrativa de Letícia Andrade)

Não sei dizer, só sei o que sai pela minha boca e nasce aqui dentro e atravessa esse ar, que carrega todas as pressas e desconfianças do mundo, é tudo que tenho. Se tenho pouco ou muito, não quero mais ter certeza, mas é o que vou começar agora.

Ele caminhava a esmo e ruminava essas palavras, carregando seus jornais de volta para casa.

Cometerei, comerei e estacionarei. Minhas cuecas úmidas, calças desbotadas e camisas amareladas, meus vinis empoeirados penduradas atrás da geladeira brastemp, que era de meu pai, meus livros sem notas de pé de páginas, limpos de palavras de difícil acesso. Tudo que tenho é o que preciso?

Entra na sala e a mesa posta é solitária, mas ele tem mais o que fazer. Não pensa e pensa. O tempo todo. Tem que ocupar a mesa com o jantar do dia.

Ovo frito, com banana e canela, é o jantar de hoje. Há muito o que se fazer hoje.

Quebra os dois ovos e se lembra da vergonha da derrota do dia, abre e corta as bananas e se lembra da falta de argumentos e do seu orgulho ferido.

O senhor tem formação profissional ou superior?

Não.

O senhor tem experiência anterior na vaga requisitada?

Não.

O senhor já teve carteira assinada?

Não, senhor.

O senhor tem referência pessoal de amigos ou parentes?

Não.

O senhor tem número de PIS ou INSS?

Não.

O senhor tem casa própria?

Não.

O senhor é casado?

Não.

Já foi casado?

Não.

O senhor tem filhos?

Sim, um.

E onde ele está?

Não sei ao certo. A mãe, o senhor sabe... quer dizer, é que não o vejo muito nesta situação.

Os ovos atiram bolhas de gordura pelo ar, enquanto a banana se derrete lentamente, tornando-se macia, suculenta e adocicada. Ele tira aquela mistura do fogo ainda alto e a serve em um prato. Senta-se à mesa com a janta na sua frente, acende seu cigarro e abre o jornal e o lê, enquanto espera a comida esfriar um pouco.

Temos as informações necessárias, entraremos em contato assim que a vaga desocupar. Obrigado.

Não vê outra alternativa, se não pensar no caso.

Daqui pra frente, vou fazer um curso de computação e juntar algum dinheiro. Se isso é importante, então é tudo que tenho.

Mas pára e continua olhando os ovos com banana no prato. Naquela hora, a única coisa que quer é que as palavras saiam pela sua boca e que outra pessoa o escutasse, mesmo. Por alguns instantes. Mas se volta ao jornal, e começa novamente a rabiscar grandes bolas sobre os quadradinhos que escondem qualquer emprego para ele.



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